Um confronto entre dois heróis abre páginas no cinema para uma nova e antiga saga bíblica do universo das Histórias em Quadrinhos (HQs). Tal disputa de egos que acabará formando um dos times de salvadores mais tradicionais da DC Comics.
Antes de mais nada, é bom ressaltar que Batman x Superman: a origem da justiça (Zack Snyder, 2016), mesmo sendo um filme de entretenimento, é essencial para esses tempos de celeuma coletiva, em que o rancor se transforma rapidamente em cólera epidêmica.
O início da trama faz ligação com o desfecho de outra história, relatada em Homem de Aço (2013), que também tem a direção de Zack Snyder. Assim, a partir de um determinado fato, o diretor costura o que vai gerar o principal motivo de ódio entre Batman e Superman.
Aliás, o ódio e a idolatria são duas faces da mesma moeda psicológica jogada por Snyder no desenvolvimento dos dois personagens.
Batman vai nutrindo o ódio por aquele que se torna seu arqui-inimigo, à medida que a idolatria da população por Superman muda e se transforma em raiva coletiva.
Znyder se ancora na mensagem humanista por trás do longa-metragem, num contexto formigado de tanto ódio e manipulação midiática, regado de hipocrisia da sociedade do espetáculo.
A grande sacada do diretor é apostar em figuras femininas como força catalisadora. Primeiro, é interessante fazer uma análise mais profunda sobre Lois Lane, a repórter vivida por Amy Adams. A atriz já tinha interpretado o mesmo papel em Homem de Aço.
As críticas negativas acusam que a performance de ter sido burocrática demais. Se reparar bem, Lois Lane é a proteção mais verossímil na trama. Sem poderes de super-herói, a jornalista investigativa e inteligente se debruça em revelar as pontas soltas nos fatos que passam a incriminar o Superman.
E não é só isso, ela encarna, de certa forma, uma heroína diante das suas próprias fraquezas no decorrer do desfecho da história. Znyder subverte totalmente o papel de mocinha indefesa nesse filme.
Por outro lado, aquela que ganha mais destaque é a Mulher-Maravilha, que teve seu debute, agora, nas telonas, com a atriz israelense Gal Gadot (franquia “Velozes e Furiosos”).
Se alguns nerds gritam aos quatro cantos que Gal Gadot é muito magra e que preferiam a beleza estonteante e as curvas de Megan Fox (que foi cotada para o papel), há de se explicar que, na verdade, foi a melhor escolha do diretor para fugir desse sexismo ainda presente em Hollywood e na cabeça dos fãs xiitas.
A Mulher-Maravilha se configura como uma Maria Madalena, em um evangelho apócrifo dessa epopeia, rompendo com os padrões dos filmes de HQs adaptados para a sétima arte. Ela não está ali para engatar romance com os protagonistas, não está ali para ser a “gostosona”, não está ali para ser salva por nenhum mocinho. Ela está ali como o ponto de equilíbrio entre os dois marmanjões. Sim, é uma laçada mágica para egocêntrico mundinho machista.
Aliás, Mulher-Maravilha já pode entrar para o time seleto de heroínas feministas de HQs que foram para o cinema, depois de Jean (Famke Janssen) e Tempestade (Halle Berry), ambas da saga X-Men.
E olha que a personagem corria sérios riscos de soar cafona e caricata demais. A roupa foi toda revitalizada digna de uma amazona. A cena em que a Mulher-Maravilha surge, com todo seu poder, engaja os mais sisudos, ao som de um rock na trilha sonora de Hans Zimmer.
E Ben Affleck como Batman? Retiro toda minha implicância ao longo do ano, nos meus posts do Facebook. Errei feio e não concordo com as críticas negativas em relação ao ator. Ele se esforçou e trouxe um Batman obscuro, negativista, rancoroso, reativo e, ao mesmo tempo, melancólico.
Henry Cavill segue justificando sua permanência no papel, pois está anos-luz em comparação com Brandon Routh. Conseguiu transitar entre um Superman autoconfiante no início e um personagem conflitante consigo mesmo no final. Segura bem os momentos mais densos da trama.
Jesse Eisenberg como Lex Luthor constituiu um personagem que vai de encontro ao estereótipo de empresário da nova geração Y (ou Vale do Silício, como preferir). É inevitável alguma associação com a interpretação antológica de Gene Hackman, na franquia de Superman, da década de 80, que embora permeava outra linha de dramatização.
A fronteira entre vilões e mocinhos começava a ficar um pouco tênue nessa pegada de Zack Snyder que conseguiu traduzir, de forma habilidosa, as dicotomias por trás dos mitos diante da ascendência e decadência, tanto do Superman quanto do Batman. Os dois são representados como justiceiros, só que cada um com seu ponto de vista do que seria justiça.
E é, por meio dessa discussão, que o diretor leva o espectador a entender a formação do time de heróis da Liga da Justiça, outra produção que virá em breve nos cinemas. “Batman x Superman” dá esse pontapé inicial com uma colcha de retalhos de referências: é a gênese pincelada para o próximo filme de time de heróis que ainda vai contar com The Flash (Ezra Miller), Aquaman (Jason Momoa) e Ciborgue (Ray Fisher).