O diretor taiwanês Ang Lee costuma ser conhecido pela versatilidade temática nos filmes.
‘O Tigre e o dragão’ (2000) trouxe romance misturado com artes marciais. ‘Hulk’ (2003) adaptou a história dos quadrinhos, mas acabou virando uma bobagem comercial dispensável. ‘O Segredo de Brokeback Mountain’ (2005) lidou com sensibilidade ímpar ao revelar o amor entre dois vaqueiros.
É difícil enxergar uma marca autoral neste cineasta apesar de suas qualidades. Entretanto, há exatamente uma que já se pode arriscar: a artimanha por tocar em temas tão delicados.
O longa ‘As aventuras de Pi’ (2012) tinha tudo pra ir por água abaixo, semelhante ao que ocorre com o grande navio que afunda na sua história.
Pi Patel tem a vida devastada por uma fatalidade. A família dele é dona de um zoológico na Índia e resolve fazer uma viagem pelo mar com destino ao Canadá.
O garoto Pi sobrevive ao naufrágio em um bote junto com uma zebra, um orangotango, uma hiena e um tigre com o nome de Richard Parker. Daí em diante, o roteiro proporciona elementos absurdos de um novelão. Absurdos pra nossa cabeça ocidental.
Reza a lenda que essa história, adaptada do livro ‘A vida de Pi’, de Yan Martel, é um plágio de ‘Max e os felinos’, escrito por Moacyr Scliar. No livro de Scliar, há um personagem que sobrevive a um naufrágio ao lado de um jaguar.
Abusando do realismo fantástico, com qualidades visual e sonora impecáveis, Ang Lee consegue ser um exímio domador de assuntos bastante filosóficos e questionadores nessa versão clonada.
A narrativa do diretor começa a ser construída em cima de uma enxurrada de metáforas, tornando ‘As aventura de Pi’ um enigma a ser desvendado.
O nome Pi caracteriza perfeitamente a essência do personagem Pi Patel (mediano ator indiano Suraj Sharma). Na matemática, não se obtém do número PI um valor sempre igual e constante, e nunca se conhece o valor da sua última casa.
Isso vai de encontro com a busca contínua de Pi Patel por autoconhecimento nas religiões como cristianismo, islamismo, judaísmo, budismo e hinduísmo, na primeira parte do filme.
Ele vai absorvendo os ensinamentos, mas nunca se satisfaz por completo, nem mesmo com o próprio racionalismo científico traduzido na figura do pai.
Ang Lee também não se dá por satisfeito. Aproveita a descida do garoto indiano a um inferno de desespero, e nutre a partir dali uma arrebatamento singular. ‘As aventuras de Pi’ não é um filme sobre religião, é um filme sobre fé.
Não é receita, não é autoajuda, não é bula de remédio pra religioso. No entanto, há algo de Osho nas entranhas do filme de Ang Lee.
Osho foi um filósofo indiano bastante controverso, inclusive, por afirmar que o deus ocidental não é a solução, e sim, um problema na história da humanidade.
Resumidamente, seus ensinamentos diziam que a liberdade, o autoconhecimento, a relação do homem consigo mesmo e com seu universo, traziam uma possibilidade para construção de um novo homem.
E o que ocorre exatamente com Pi, após aquele naufrágio, diante de tanta solidão suprema em alto-mar?
Outra metáfora perspicaz se constrói na figura do tigre Richard Parker. Por motivos óbvios não se poderá tecer tantos detalhes.
No entanto, o animal evidencia a ideia de que o homem tem a capacidade de se iluminar e desenvolver seu potencial por meio de uma fé construída por ele mesmo.