No dia 14 de junho de 2019, Madonna lançava o álbum Madame X, seu décimo quarto disco da carreira.
Produzido pelo francês Mirwais Ahmadzaï, a Rainha do Pop absorveu vários gêneros musicais além das fronteiras do pop comercial e dialogou com premonições reflexivas atemporais que ecoam inclusive no nosso presente.
Além de ser o álbum mais experimental, arriscado e nada confortável, transita simbolicamente entre a distopia e a utopia. É esperançoso e, ao mesmo tempo, cravado na angústia de um novo tempo nada simpático e animador.
Além das fronteiras
Vale a pena analisar o contexto em que Madame X é lançado. É um momento em que a situação dos imigrantes continua sendo o principal alvo de líderes populistas de extrema-direita em vários países.
O disco combina, de maneira inusitada, gêneros musicais como funk, reggaeton, trap, fado e funaná. Uma obra que ultrapassa os muros do American Way of Life.
Madonna gravou o disco em Lisboa. Lá, ela diz ter percebido como deveria trabalhar Madame X: ‘tenho que pegar o que estou ouvindo e virar de cabeça para baixo”, relata no documentário The World of Madame X.
O resultado é o flerte do gênero pop norte-americano com a world music ao trazer elementos tradicionais das músicas angolana e portuguesa, apresentados a ela pelo artista Dino D´Santiago.
A canção Killers Who Are Partying (Os Assassinos Estão Festejando) talvez seja o melhor resumo de todo disco: “O mundo é selvagem. O caminho é solitário”. Sim, Madonna canta em português, em vários momentos do disco inclusive.
E tal caminho acabou se cruzando com a obra de Cesária Évora, cantora de Cabo Verde. É uma das principais referências musicais em Madame X. Na turnê, Madonna inclusive faz uma versão de Sodade.
Elos com a sétima arte
Pelo visto, Madonna continua buscando nos cinemas clássico e alternativo uma fonte fértil de referências.
Nos anos de 1980, o clipe de Material Girl foi inspirado na performance de Marilyn Monroe em Os homens preferem as loiras (Howard Hawks, 1965). No final da década de 1990, The Power of Goodbye fez referência a Acordes do Coração (Humoresque – Jean Negulesco, 1946), com Joan Crawford.
Crave, que conta com a parceria do rapper Swae Lee, traz cenas que dialogam com Sindicato dos Ladrões (Elia Kazan, de 1954), com Marlon Brando no elenco.
Colcha de retalhos
O nome Madame X dá título a pelo menos três filmes. No entanto, talvez o longa-metragem da diretora alemã Ulrike Ottinger, lançado em 1977, seja o que mais se aproxima das referências do álbum.
A trama gira em torno de uma pirata, Madame X. Com o lema “Ouro, amor e aventura”, ela convoca lésbicas de várias etnias para conquistarem a China.
Na divulgação do disco e nas performances, Madonna constantemente apareceu com um tapa-olho, acessório usado pelos piratas para melhorar a visão em alto mar. Algo bastante simbólico em tempos de cegueiras inacreditáveis (terraplanismo que o diga).
Será que atualmente Madame X olha o nosso mundo por outra perspectiva, além das nossas bolhas e do “novo normal”?
Essa personagem desbravadora e feminista traz uma teia de referências em obras do passado da própria Madonna.
No disco MDNA, de 2012, Madonna se inspirou em Tarla, a anti-heroína feminista, interpretada por Tura Satana, em Faster, Pussycat! Kill! Kill! (Russ Meyer, de 1965). Que, aliás, puxa o fio de outra persona, o alter-ego Dita, do álbum Erotica, de 1992. É Madonna imprimindo a sua marca, sem parecer cópia de si própria.
Outra menção honrosa cabe ao clipe de Batuka, dirigido por Emmanuel Adjei, com a presença da orquestra de mulheres As Batukadeiras.
Palco político
A persona Madame X também é uma alquimista política. E fazendo jus a uma pirata feminista, Madonna se ancora em Frida Kahlo e nas operárias russas para dar o seu recado em duas versões das capas do álbum.
Essa iconografia virada do avesso é algo presente também na capa do disco American Life, em que Madonna flerta com a figura de Che Guevara.
O trabalho audiovisual também não foge à regra. O videoclipe de Dark Ballet sela mais uma parceria com o diretor Emmanuel Adjei. Entra em cena Mykki Blanco, ativista negro, transgênero e soropositivo, como Joana D’arc sendo queimada na fogueira.
Regado a melodias de The Nutcracker Suite – Dance of the Reed Flutes, de Tchaikovsky,
Dark Ballet é uma representação simbólica dos ataques recorrentes à população trans. Vide o que foi noticiado recentemente: uma mulher trans negra sendo brutalmente espancada por 30 homens e o homicídio de Dominique Remmie.
God Control é a crítica ácida à cultura das armas. Traz um coral infantil que faz menção aos protestos de estudantes, após massacres em escolas norte-americanas. I Rise é mais um palanque político do disco, principalmente ao introduzir o discurso de Emma González, ativista antiarmas e sobrevivente de um massacre nos EUA.
Se fosse lançado hoje, o reggae Future talvez teria sido hino de um mundo pós-pandemia, que transita entre pensamentos sombrios e boa vibrações, desfeitos em bolhas de sabão.
Not everyone is coming to the future (Nem todo mundo vai vir pro futuro)
Not everyone is learning from the past (Nem todo mundo está aprendendo com o passado)
Not everyone can come into the future (Nem todo mundo pode vir pro futuro)
Not everyone that’s here is gonna last (Nem todo mundo aqui vai durar)
Cabe também momentos de escapismo em Madame X. É o seu flerte comercial tendo como parceria cantores latinos. Madonna leva o colombiano Maluma para devaneios em Medellín e Bitch I´m a loca. E se diverte com Anitta em Faz Gostoso, uma releitura da canção original da artista luso-brasileira Blaya.
Madame X no universo “madonnístico”
Madame X é a melhor reinvenção desde os discos Like a Prayer, Ray of Light e Confessions on a dance floor. É experimental e vanguardista como Erotica e Bedtime Stories. Político como American Life. Ruidoso como Music e MDNA. Urbano como Hard Candy. Dolorido como Rebel Heart.
Um álbum que fala do presente com o olhar no futuro. Absorve as tendências do agora e abre a fronteira no mundo pop para outros ritmos.
É universal e contemporâneo na mensagem política. Vanguardista e conceitual na sonoridade. Autoral e um divisor de águas. Prova uma efervescência criativa e bizarra que ainda destoa de tudo o que Madonna lançou em quatro décadas de estrada.