Em 1937, nascia, na favela carioca de Moça Bonita, a cantora Elza Soares.
De lá pra cá, são oito décadas de trajetória resiliente, que contrasta, constantemente, vida e morte. Literal e metafórica.
Casou-se aos 12 anos, contra a própria vontade. Aos 13, engravidou do primeiro filho. Teve sete. Dois morreram de fome. Apanhou e foi perseguida pela moral, pelos bons costumes, pela ditadura e pelos homens.
Pelas estatísticas, Elza jamais chegaria ao asfalto. Mas, seu DNA carrega algo inexplicável que liga essa mulher a muitas Dandaras, Rosas Parks, Marieles, Marias da Penha.
Pois bem, os ouvidos do mundo escutaram (e ainda escutam) a sua voz rouca e singular, que rasga qualquer tentativa de abafar o feminino, tanto ontem, como hoje.
Negra, mulher e mãe. Sua trajetória é, incontestavelmente, a luta diária e universal de TODXS as mulheres.
Mostrar isso nos palcos não é uma missão fácil.
“Elza – o musical” ao mesmo tempo que joga a plateia no abismo, consegue trazer o público de volta pro topo da montanha, de uma forma muito sublime, sem ser superficial.
Ver sua vida, de forma macro, é vislumbrar um espetáculo como ato político, do início ao fim.
Inevitável não sentar ali, naquela cadeira, e não relacionar as fases da vida da Elza com as mulheres que tocam e tocaram nossos corações.
Mães, avós, tias namoradas, esposas, amantes, amigas, colegas, mulheres da vida.
Inevitável não se emocionar. Nós, homens, condicionados sempre a não chorar, desabamos.
Lágrimas misturadas com saudade, com revolta, com admiração, com catarse, com culpa. Ainda tratamos muito mal as nossas mulheres.
Fiquei, em vários momentos, pensando na minha avó, na minha mãe e na própria Elza. Como suas trajetórias se ligam de maneira tão transversal. Imagine como isso deve desaguar na cabeça de outras mulheres.
Reinvenção resistente
Além do mais, como deve ter sido pra Elza Soares ver a vida dela sendo cantada e contada naquele palco, diante de atrizes e musicistas tão talentosas e originais?
As fases da artista são retratadas por várias mulheres. Cada uma impõe sua força descomunal pela voz e pela interpretação visceral.
Não havia outro caminho a não ser esse, porque senão se impor, senão teimar, não é Elza Soares. Soa falso. Caricato. Elza é resistir e lutar, sempre.
O texto de Vinícius Calderoni e a direção de Duda Maia se completam com o trabalho de Pedro Luís, que repaginou os arranjos dos clássicos da cantora. Canções que chegam a tocar a alma.
Janamô, Júlia Dias, Késia Estácio, Khrystal, Laís Lacôrte e Verônica Bonfim compõem esse elenco feminino coeso e magistral. O tom certo, a batida perfeita. Orquestra sincopada de corpos belos que fogem do padrão imposto por aí.
Mas há um outro brilho especial que encarna Elza Soares, e que te deixa, literalmente, sem fôlego: Larissa Luz.
Os trejeitos, o sorriso, a voz rouca. Tudo minuciosamente equalizado para projetar a lenda viva, diante dos nossos olhos, que teimam em acreditar no que estão vendo.
Choro outra vez quando escrevo este texto. E não sei exatamente o motivo. Não me importo.
Só agradeço por existir mulheres como Elza na minha vida.
Agradeço por ter sido da geração que viu Elza ressurgir, como uma fênix, novamente.
Seu grito ecoa, principalmente, para os mais novos.
A inconfundível voz rasgada, de dor e esperança, jamais terá fim. Obrigado, Elza!