Beyoncé mete um pontapé na porta do armário, que a enclausurou durante anos na indústria musical, com o novo álbum”Lemonade”. Mas será que sai da redoma de vidro amorosa e midiática?
“Meus ancestrais escravizados tomavam limonada achando que isso iria embranquecê-los. A mídia me deu limonada, mas não adiantou.” – Beyoncé.
O nome remete ao suco de limão que os escravos faziam na missão de clarear a pele. Isso teria justificado o título do disco, segundo uma recente declaração da cantora.
Faz todo o sentido, pois é um trabalho tão autoral e político quanto se pode imaginar. Beyoncé joga e emerge em cima do tripé de escravidão: a histórica, a midiática e a amorosa.
“Lemonade” tem 12 faixas que vem acompanhadas de uma impecável compilação de videoclipes que forma um longa-metragem, além de um documentário exibido pela HBO.
O sexto disco da carreira teve lançamento exclusivo no Tidal, plataforma de streaming do marido da cantora, o rapper e empresário Jay-Z. Mas já está disponibilizado no iTunes. O disco físico está previsto para chegar, às prateleiras das lojas, no dia 6 de maio.
Há letras repletas de mágoas de um coração partido (“Don’t Hurt Yourself”), há raiva pelo contexto social (as enigmáticas e destruidoras “Freedmon” e “Formation”) e há vingança por ter ficado num casulo sentimental por tanto tempo (“Sorry”).
Aliás, “Sorry” entrou no hall de polêmicas nos últimos dias. A letra sugere que a artista deu uma alfinetada na amante e no próprio marido.
““He only want me when I’m not on there/ He better call Becky with the good hair” (“Ele só me quer que eu quando eu não estou lá/ É melhor ele chamar a Becky do cabelo bom”, em tradução livre)”.
O alvo seria não só Jay-Z mas também a estilista Rachel Roy, ex-mulher do sócio do rapper, Damon Dash. Claro que a suposta amante devolveu o veneno e o caos se instaurou no Instagram. Fãs da Beyoncé atacaram a conta da moça.
O irônico nisso tudo é que Beyoncé revela uma língua afiada, mas, ao mesmo tempo, insiste na imagem esposa feliz que superou as traições do marido. Isso pode ser visto no material do disco visual, com as imagens do seu casamento.
Vamos abrir um sério parênteses aqui. Definitivamente esse feminismo incubado nas obras de Beyoncé ainda é muito turvo. Para uma mulher com incríveis canções sobre o tema, como “Survivor”, “Independent Women”, “Single Ladies” e “Run The Word (Girls)”, sua vida privada chega a ser destoante do que é propagado no marketing.
E para uma artista que se galga em um trabalho autobiográfico, isso é demasiadamente questionável. É ainda mais questionável seus fãs atuarem para perpetuar inconscientemente o machismo, quando miram a metralhadora para uma outra mulher. Jay-Z agradece.
Barracos à parte, com certeza, Beyoncé é a única artista da nova safra de cantoras, hoje, capaz de deixar um legado como popstar, mas, convenhamos, ainda resta dúvida até que ponto não está ancorada nas mãos do seu marido e de toda engenharia dos seus familiares, que cuidam da sua carreira desde criança.
Por outro lado, Beyoncé parece ir soltando as amarras da indústria que, por muito tempo, tentou enquadrá-la. É incrível ver Queen B, como é carinhosamente apelidada, aderindo ao visual afro e fazendo excursão pelo jazz, gospel, reggae, soul e R&B, jogando o pop chiclete no lixo.
A única fórmula repetida, com sucesso, é aquela que a consagrou no ano de 2013. Lançou as canções junto de um compilado de videoclipes. Veio, mais uma vez, caladinha na moita. No meio do mato, espremeu a limonada em faixas acompanhadas de uma enxurrada estética que prima como divisor de águas.
São clipes que revelam uma Beyoncé mais autoral e que assume, de vez, inúmeras referências do movimento cultural afrofuturista, que podem ser vistas nos elementos nos figurinos: os vestidos com as camadas sobrepostas, a pegada hi-tech, além do forte misticismo e simbolismo da mitologia africana.
A narrativa, carregada de efeitos slow motion, deságua em imagens que mostram negros e negras mais apaziguados e conscientes do seu empoderamento. Dificilmente houve algo tão parecido na história dos videoclipes com artistas da black music. Antes, eles viviam em luta contra suas origens, combatendo ou vendendo sexo, em uma cacofonia de amarras da indústria cultural.
Pra fazer essa bebida, a cantora foi buscar água em outras fontes. Do visual ao aspecto sonoro, “Lemonade” é a batida-bomba em tudo quanto é referência. Além das parcerias com The Weeknd, Kendrick Lamar, Jack White e James Blake, há inúmeros outras artistas que acabam por cruzar o pastiche desse novo trabalho.
Colagens que surfam nos trabalhos dos grandes nomes da época de ouro da Motown, além de Janelle Monné, M.I.A, Tina Turner, Aretha Franklin e uma saraivada de samples que vão desde Yeah, Yeah, Yeahs (na faixa “Hold Up”); passando por Led Zepplin (Don’t Hurt Yourself) e Outkast (na canção “All Night”).
É fato que, com”Lemonade”, Beyoncé espremeu o pop na sua quintessência, batido com imponderáveis raízes do R&B.
*Conheça mais sobre as referências no trabalho de Beyoncé, em Lemonade.