O caso de George Floyd, morto ao ser asfixiado por um policial nos EUA, provoca protestos em Minneapolis e também reacende questões raciais que já foram abordadas pelo cinema.
Parte desse prisma de discussão está A Noite dos Mortos Vivos (George A. Romero – 1968), que sempre renasce em debates, como uma metáfora sociopolítica sobre racismo ao longo dos anos.
Romero (1940-2017) não imaginava que seu filme, de baixo orçamento e independente, se tornaria um divisor de águas em várias questões.
Pelo aspecto cinematográfico, o longa-metragem, filmado em preto e branco, é um marco no gênero terror, pois foi o Big Bang das histórias de zumbis.
Romero fez escola e não parou por aí. Sua cartilha traz O Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead, 1978), O Dia dos Mortos (Day of the dead, 1985) e Terra dos Mortos (Land of the Dead, 2005).
A Noite do Mortos Vivos ganhou um importante remake em 1991. Na refilmagem, Romero assina apenas o roteiro, e a direção é de Tom Savini, referência em efeitos especiais de filmes de horror.
Um filme “preto e branco”
Em entrevista ao IndieWire, Romero admitiu que fez o filme como uma crítica à falta de comunicação entre as pessoas e de união entre os grupos. Vale lembrar que o longa-metragem é lançado no contexto da Guerra do Vietnã, da Guerra Fria e dos conflitos sociais nos EUA.
No entanto, o diretor diz compreender como a A Noite dos Mortos Vivos foi se aproximando da questão racial.
“Então, de repente, acidentalmente se tornou um filme racial por causa do personagem de Duane Jones. Não há nada no diálogo ou em qualquer outro lugar que diga que este filme é sobre raça, mas foi isso que o tornou importante, eu acho.”
O filme foi pioneiro ao colocar um ator negro empoderado como protagonista do gênero terror. E depois disso permaneceu-se um hiato em produções mais populares em várias décadas.
Salvem-se raras exceções como O Mistério de Candyman (Bernard Rose, 1992), Corra! (2017) e Nós (2019), estes últimos dirigidos por Jordan Peele.
Clima de intolerância (alerta spoiler!)
Uma cidadezinha do interior dos Estados Unidos sofre uma radiação provocada pela queda de um satélite. O acidente faz com que os mortos levantem das covas e se transformem em zumbis, terrivelmente descontrolados e sedentos por comer carne humana.
Ben, interpretado pelo ator Duane Jones (1937-1988), torna-se o único sobrevivente de um grupo de desconhecidos que se escondem numa casa, localizada na zona rural.
Durante a trama, há uma desconfiança velada vinda das pessoas, pelo fato de Ben ser o único negro entre eles. Nem mesma a estratégia de fuga articulada por Ben é capaz de convencê-los por completo.
Quando o grupo de zumbis consegue romper a barreira de proteção montada, Ben é o único que consegue lutar até o fim.
Ele se refugia no sótão e espera o dia amanhecer. Quando o cenário, aparentemente, não oferece mais perigo, ele sobe as escadas e vê uma movimentação atípica.
Um grupo de policiais e jornalistas chega ao local. Vários zumbis vão sendo mortos pelos justiceiros.
Ben tem final trágico. É morto por engano, com um tiro que vem de fora da casa. A cena final mostra seu corpo sendo empilhado com os dos zumbis.
Um outro lado da história
Atualmente, esse desfecho pode ser interpretado sob vários pontos de vistas.
Por exemplo, os zumbis representam a guerra dos EUA contra às drogas ou qualquer perigo iminente “cultuado” pelos próprios norte-americanos.
No filme, não sabemos ao certo se Ben foi confundido com um zumbi ou se seu “vulto” pela casa assustou os policiais, que estavam do lado de fora.
Mas vemos ali a tática do “atire e pergunte depois”, uma abordagem policial nefasta para a comunidade negra. E quando negro é confundido como bandido nas ruas, ele se torna um alvo constante da opressão e repressão, numa estrutura de sociedade intrinsecamente violenta e racista.
Vale destacar uma fala da pesquisadora Robin R. Means Coleman, professora de Estudos Afro-Americanos e Africanos da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.
No ano passado, ela lançou um livro sobre a representação do personagem negro nos filmes de terror: “Ainda que o filme de Romero se tratasse de uma fantasia com zumbis comedores de carne, ainda era uma obra com um realismo impressionante visto que ele direcionou a atenção da audiência de maneira que ela entendesse que ‘no mundo real dos negros as multidões brancas são bem mais mortais’”.
Assista ao filme disponível no YouTube: