Nossa cultura nunca desgrudou do sexo e da sexualidade, mesmo quando quer jogá-los para escanteio.
Um bom termômetro pra medir isso é uma obra, lançada há 27 anos, por uma das artistas da música pop que sempre tocou o dedo na ferida do moralismo ocidental. Claro que estamos falando de Madonna e seu livro Sex, que foi parar nas prateleiras, no dia 21 de outubro de 1992.
Depois de quase 3 décadas, o site Bookfinder, que divulga uma lista anual dos cem livros fora de catálogo mais procurados, apresentou uma atualização: lá está o livro Sex no primeiro lugar do ranking, inclusive na frente de autores renomados como Stephen King. Detalhe, isso ocorre desde 2011.
É pertinente voltar ao túnel do tempo para analisar o rebuliço que essa obra causou na década de 1990. A Rainha do Pop tinha 34 anos na época. Sex era um marketing de apoio para o disco Erotica, que havia sido lançado um dia antes. O livro não teria esse nome, e, sim, X. Mas Madonna resolveu mudar de ideia porque o filme Malcom X iria ser divulgado em novembro do mesmo ano (pelo visto, Madame X, sua personagem atual, sempre esteve à espreita).
Boa parte das fotos, do norte-americanco Steve Meisel, parceiro artístico de longa data de Madonna, foi tirada no formato Super 8 e compilada pelo diretor de arte francês Fabien Baron. Dentre as principais influências artísticas estão o fotógrafo e ilustrador francês Guy Bourdin (1928-1991) e o fotógrafo de moda, o alemão Helmut Newton (1920-2004).
Há uma estimativa que os ensaios renderam 80 mil fotografias. Claro que só poucas foram impressas no resultado final. A artilharia usada por Madonna foi enigmática: simulações de atos sexuais, sadomasoquismo, sexo grupal, anal, oral, gay, lesbianismo. E ela não parou por aí. Criou um alter ego, a Mistress Dita, inspirada na atriz da década de 1930, Dita Parlo, para sair numa viagem sexual traduzida em poemas e historinhas.
Madonna também não poupou no time de astros ao fazer ensaios com a atriz Isabella Rossellini, os rappers Big Daddy Kane e Vanilla Ice (namorado da cantora na época), a modelo Naomi Campbell, o ator pornô gay Joey Stefano, o ator Udo Kier (que atuou recentemente no filme brasileiro Bacurau), a socialite Tatiana von Fürstenberg e a dona de boates Ingrid Casares (que reza lenda foi a “amizade colorida” de Madonna por um bom tempo).
Naquele período, críticos e até alguns fãs receberam o projeto de forma bem negativa. Achavam que Madonna tinha ido longe demais e muitos já enterravam a carreira da Rainha do Pop.
Mesmo assim, Sex não sepultou nem o reinado de cantora e tampouco seu principal objetivo. Vendeu mais de 150.000 cópias no dia de lançamento e, de acordo com o jornal The New York Times, esteve no pódio dos livros mais vendidos.
A primeira tiragem de Sex, de 1,5 milhão de cópias, foi vendida no mundo inteiro, em apenas três dias. Ele é considerado o livro, em edição limitada, mais bem sucedido da história. E Erotica, mesmo sendo um dos poucos álbuns menos vendidos de Madonna, com “apenas” 6 milhões de cópias na época, hoje é o queridinho de muitos especialistas e admiradores.
E nem pense que Madonna se deu por vencida. A fase Erotica, que vai de 1992 a 1994, ainda gerou frutos com o clipe homônimo; o filme Corpo em Evidência, em que ela vivia uma sociopata com comportamento sexual agressivo; a turnê repleta de efervescência sexual The Girlie Show; e mais clipes provocadores como Justify My Love e o questionador Human Nature.
O contato Sex
Pela primeira vez, tive acesso ao Sex. O livro vem embrulhado em um saco Mylar (uma referência à camisinha?), o que provavelmente deve ter atiçado ainda mais a curiosidade das pessoas naquele tempo, pois algumas livrarias não abriam um único exemplar da publicação, como fazem constantemente com as demais obras. Veja nessa matéria.
A capa é de metal pesado e não é uma publicação tão fácil de manusear. É pra ser folheado com bastante cuidado. Uma grande sacada de Madonna para obrigar o leitor a admirar (ou “repudiar”) as fotos.
Era previsível que a sociedade mais careta se escandalizasse. Madonna escancarou quase todo o tipo de prática sexual que as pessoas fingiam não praticar ou desejar.
Mesmo não trazendo sexo explícito, há alusões criativas e provocadoras. Vale destacar algumas fotos:
- Uma mulher encostando um canivete na genitália de Madonna. A foto dá o tom de boa parte do livro. Sex fala muito mais da relação de poder que emerge com o sexo do que a erotização em si.
- Madonna sugere gozar em cima de Naomi Campbell, com um tubo de protetor solar;
- Madonna sentada no colo de um senhor apalpando os seios da cantora;
- Madonna simulando uma gozada exagerada em cima de uma fonte, em forma de peixe;
- Madonna (de coelhinha da Playboy?) insinuando carinho sexual em um cachorro;
- Madonna se masturbando em cima de um espelho. Essa foto inclusive gerou uma resposta clássica da cantora a um jornalista que fez um pergunta pra lá de machista. Assista ao vídeo.
- A melhor de todas que é Madonna mordendo a bunda de um homem, que está em posição agachada, dando entender que ela é o “ativo” da relação, transmutando todas as regras (machistas) do jogo sexual.
Sex ainda está aí. É como um cometa passeando por uma órbita de sensações ainda difícil de decifrar. É uma relíquia pelo seu conteúdo? Por ser da Madonna? Por ter tido edição limitada? Como a geração digital de hoje reagiria se Madonna ousasse lançar uma edição 2.0 do livro atualmente?
Além do mais, imagine uma Madonna, com 61 anos, fazendo os mesmos e outros ensaios tão picantes quanto os de 1992. Se a Raina do Pop já enfrenta preconceito pela idade, em pleno século XXI, o que esperar de algo como um Sex – parte II?
Sex ainda mexe com a libido e com os mais obscuros desejos. E olha que ele ainda é suave perto do que a Internet já traz hoje, com a mais diversificada pornografia que já existiu, com os bailes funks proibidões, com os vídeos de “pegações” que saem vazando por aí.
É a mesma sociedade que dá audiência a site pornôs, como o Xvídeos, responsável por 4,4 bilhões de páginas vistas todo mês, segundo último levantamento. O número é três vezes maior que o diagnosticado em portais como CNN e ESPN para se ter uma ideia, de acordo com a matéria do Extreme Tech.
Entretanto, é a mesma sociedade que ainda consome “Cinquenta Tons de Cinza”e se choca em filmes como “Azul é a Cor Mais Quente” e “Ninfomaníaca”.
Embora essa tara pelo outro esteja presente nos diversos livros e filmes, ela começa permear outros campos. Essa mesma sociedade propaga o termo “Manda nudes” e o usa para trocar fotos íntimas por aplicativos e redes sociais.
Será que nessa era de aplicativos em smartphones, nota-se uma maior dinâmica de olhares, exibições e práticas sexuais? De que forma a nossa curiosidade sexual tem sido afetada? Que relação ambígua é essa que ainda estabelecemos com algo que ainda é considerado tabu?
Convivemos nesse limiar dicotômico. Aceitamos de forma bem hipócrita tudo que o sexo engloba. A sociedade parece ainda engatinhar para enxergar isso da maneira mais natural possível.
Por incrível que pareça, ainda há olhares atravessados e surpresos em relação à própria Madonna, quando esta fica de calcinha e sutiã no palco.
Vela extrair e reformular uma resposta da própria Madonna durante uma entrevista, ao ser questionada se tinha vergonha do livro Sex: “Como um trabalho tão bonito mostrou a recepção cruel da humanidade?”
Fica aí a reflexão.
*Texto escrito em 2015 e atualizado para os dias atuais.