Seria possível trazer a história de homem-morcego, sem se enforcar em clichês e, ainda, dar um outro rumo, mantendo a essência de uma trama tão recontada diversas vezes na sétima arte?
O diretor Matt Reeves, responsável pelos remakes “Deixe ela entrar”, “Planeta dos Macacos – o confronto” e “Planeta dos Macacos – a guerra”, mostra que isso é possível e, além disso, deixou a sua marca na estética em “The Batman”.
No entanto, era uma tarefa arriscada, pois comparações com outros filmes seriam inevitáveis. Principalmente, se lembrarmos como Tim Burton reinventou no cinema o cenário visual gótico impecável com “Batman”, de 1989, e “Batman, o retorno”, de 1992.
Nesse quesito, Reeves pega carona no tom fúnebre e o revigora, de maneira bastante peculiar, para caracterizar um dos anti-heróis mais controversos que descortina fragilidades, escancara um ideal de masculinidade em declínio e coloca em xeque sua própria ética.
DNA de outros Batmans
Se, na trilogia de Christopher Nolan (“Batman – o início”, “Batman – o cavaleiro das trevas” e “Batman – o cavaleiro das trevas ressurge”), o homem-morcego era acometido pela culpa e pelo medo, na releitura de Reeves, o anti-herói se vê imerso numa teia de corrupção sistêmica que acomete sua vida pessoal e revira do avesso seus próprios valores.
Apesar de Reeves inserir o DNA clássico de outros Batmans, por exemplo, sua rigidez em relação às regras e a brutalidade em doses cavalares, por outro lado, vemos um protagonista soturno e depressivo. E não é pra menos. Faz todo sentido esse Batman que entra em colapso, diante de uma Gothan mergulhada em decadência, corrupção e violência.
Robert Pattinson como Batman. Reprodução: Warner Bros.
Batman x Bruce Wayne
Não espere inclusive aquele Bruce Wayne mulherengo de filmes anteriores que usava o comportamento hedonista como disfarce. O longa-metragem traz um Bruce/Batman totalmente melancólico, driblando um inferno particular e sendo engolido por tribunal moral paralelo na sociedade.
Robert Pattinson caiu como uma luva nesse tom de abismo sombrio. Quem o viu no terror “O Farol” (Robert Eggers, 2019), sabe que ele seria o ator ideal para viver esse perfil de Batman. Além do mais, Pattinson consegue a difícil habilidade de interpretar somente pelo olhar e pelo andar, pois, em 90% do filme, ele está com máscara e roupa de Batman.
Esse é um aspecto totalmente diferente em comparação com os outros filmes sobre o homem-morcego, em que o público acompanhava a dicotomia entre Bruce Wayne e o vigilante das ruas.
Isso ainda persiste. Mas está nas entrelinhas. Por exemplo, o longa-metragem não mostra a clássica cena em que Bruce Wayne vê o pai e a mãe sendo assassinados num beco escuro.
No entanto, Reeves é cirúrgico ao revelar o tormento daquele passado em uma única cena. É quando o Bruce adulto se depara com uma criança que encontrou o corpo do pai assassinado com requintes de crueldade.
Outra pegada é apostar num Batman com habilidades de detetive e de desvendar enigmas. Características semelhantes ao herói interpretado por Adam West, em “Batman”, de 1966.
Mas, aqui, entra o clima dos filmes noir, subgênero dos longas-metragens policiais, influenciado pelo expressionismo alemão. Reeves acerta, e muito, na tensão embalada pela incrível trilha sonora de Michael Giacchino, duelando entre o suspense e terror. Vale lembrar que o diretor tentou algo muito parecido em “Cloverfield”.
Teia de fake news
Com um roteiro peculiar, Reeves, em parceria com Peter Craig (“Jogos Vorazes 1 e 2”), constrói vários pontos de vista paralelos na trama.
Uma parte da história é contada pelo próprio Batman, enquanto outros fatos vão sendo narrados pelos discursos de mafiosos e pela imprensa, por meio de um telejornal diário que ganha audiência à medida que divulga vídeos violentos, enviados pelo vilão Charada, por meio das redes sociais.
Dessa maneira, a trama é elaborada dentro de uma teia complexa que joga o espectador, inclusive, no universo da rede de fake news.
Zoë Kravitz (Mulher-gato), Collin Farrel (Pinguim) e Paul Dano (Charada).
Reprodução: montagem.
Vilões revisitados
Outra grande surpresa é a atuação visceral de Paul Dano como Charada, personagem que já foi vivido por Frank Gorshin e Jim Carrey em “Batman” (Leslie H. Martinson, 1966) e “Batman Eternamente” (Joel Schumacher, 1995), respectivamente.
Sai a essência cômica, caricata e humorística, e entra um Charada calculista, frio e sanguinário que se encaixaria, perfeitamente, como representante da seita política QAnon nos dias atuais. Aliás, reza a lenda que foi inspirado em Zodíaco, serial killer dos anos de 1960.
Colin Farrell está estupendo como Pinguim e conseguiu se distanciar do personagem protagonizado iconicamente por Danny DeVitto em “Batman, o retorno” (Tim Burton, 1992).
O mesmo se pode dizer de Zoë Kravitz como Mulher-gato, personificando uma anti femme fatale, em contraponto ao que Michelle Pfeiffer realizou com maestria. Aqui, temos uma personagem bissexual que simboliza as dificuldades de mulheres que são, constantemente, castradas e tentam se manter no mundo do crime dominado por homens. A atriz mostra que nasceu para o papel.
Ao unir todos esses pontos, Reeves pode abrir portas para uma nova trilogia mais contemporânea, já que sua visão de Batman se acopla, de forma tão taciturna, aos nossos tempos também nebulosos.