Hollywood, dos autores Ryan Murphy (American Horror Story, American Crime Story) e Ian Brennan (Scream Queens, Glee), disponível no canal de streaming Netflix, é uma fábula contemporânea que retrata a máquina de sonhos da sétima arte na conflituosa e opressora década de 1940.
A trama gira em torno de um grupo de artistas que almeja uma carreira em um grande estúdio de cinema, no período pós-guerra.
Suas vidas se cruzam quando todos vão trabalhar numa produção que irá retratar a vida de Peg Entwistle, atriz galesa que cometeu suicídio ao pular do famoso letreiro de Hollywood.
Só que um detalhe começa a chamar atenção: o time de profissionais é composto por tudo aquilo que Hollywood sequer algum dia cogitava aceitar.
Vale lembrar que a indústria do cinema surgiu por meio da força de trabalho de imigrantes, negros e LGBTs. No entanto ela levou décadas para começar a dissipar os estereótipos desses grupos na tela e a nivelar uma leve igualdade de oportunidades na carreira dos profissionais.
Esse é o fio condutor da trama, que, ao misturar entretenimento e crítica social, traz, numa tacada só, reflexões sobre ageismo, racismo, homofobia e misoginia.
Arte e política
Naquela época, a sociedade norte-americana vivia os meados da Era de Ouro no cinema, período que fincou os EUA como principal potência cinematográfica. A TV era ainda um terreno pouco explorado e vista como segunda categoria na carreira dos artistas.
No campo político, o país vivia polarizado. A região norte detinha um pensamento mais progressista e o sul ainda transbordava uma ideologia escravocrata.
Ryan e Ian, por meio de um roteiro meticuloso, inserem esse contexto na minissérie. Eles dão a ideia de como era viver sob uma bomba relógio social.
Para colocar mais lenha na fogueira, os autores mudam o percurso da História. Como seria se Hollywood fosse forçada a abrir as portas, para uma atriz negra como protagonista e um roteirista negro e homossexual? E parasse de enclausurar os atores e diretores gays dentro do armário?
Há de se ressaltar que a indústria de Hollywood sempre foi um espelho côncavo e convexo dos costumes da realidade norte-americana. Se por um lado, no seu espelho côncavo, a imagem refletida é real, menor e invertida, no convexo, ela é bastante distorcida.
A analogia faz sentido quando olhamos, nos filmes, a representação dos imigrantes, dos negros e LGBTs, desde o surgimento do cinema.
Uma volta no tempo
O Cantor de Jazz, de 1927, é considerado um marco no cinema, por ser o “primeiro” filme falado. No longa-metragem, o ator Al Jolson, branco, usa a maquiagem blackface, para interpretar um personagem negro. Era uma técnica bastante comum naquela época, mas que acabou caindo no ostracismo.
O tempo passou. O racismo vigente mudou de cara. Em 1940, Hattie McDaniel ganha o Oscar de melhor atriz coadjuvante por E o vento levou. Torna-se a primeira atriz negra a levar a “estatueta”, depois de 12 anos de existência da premiação.
Reza a lenda que foi barrada na noite da cerimônia. Conforme este artigo do El País, o produtor David O. Selznick teve que pedir autorização para que ela pudesse comparecer ao evento. Não pôde nem tirar a famosa e tradicional foto com o restante dos premiados.
Ganhar um Oscar não abriu portas para Hattie. Lésbica e fora dos padrões hollywoodianos, ela ficou fadada a interpretar o mesmo tipo de personagem: a empregada sarcástica e engraçada.
A minissérie escancara essas feridas. Hattie é vivida pela artista Queen Latifah. Inclusive um dos diálogos mais emocionantes do seriado é compartilhado entre ela e a jovem Camille Washington (Laura Harrier) que luta para fugir de papéis estereotipados.
Luzes no armário
Os EUA viveram um período em que produzir filmes, com a presença de personagens gays, ou mesmo a menção à homossexualidade, era considerado uma atividade perigosa e, muitas vezes, ilegal.
Diante desse contexto, a minissérie retrata a grande influência dos profissionais homossexuais, assumidos ou não, nos bastidores de Hollywood.
A maioria não assumia a sua orientação publicamente. Os guetos, como bares e festas privadas, eram comuns para que a comunidade LGBT daquela época pudesse expressar afeto e sexualidade.
Vale destacar a atuação de Jim Parsons (Sheldon, de Big Bang Theory) como o produtor gay Henry Wilson, um dos personagens mais emblemáticos e maquiavélicos da trama, porém, às vezes, resultado do próprio meio em que vivia. Talvez seja a representação mais fiel à realidade, pois Henry era conhecido por ser antiético e oprimir atores homossexuais.
A grande surpresa também veio com a atuação de Jake Picking como Rock Hudson, um dos maiores símbolos sexuais da história do cinema e que viveu sua sexualidade apenas nos bastidores. Só veio a sair do armário na década de 1980, quando contraiu o vírus HIV.
Outro The End
Hollywood, de certa forma, é uma homenagem inspiradora e otimista para os novos tempos. O próprio Ryan confessa isso em uma entrevista ao portal E!. Ele queria deixar uma outra mensagem, mais positiva, em contraponto ao seriado Feud: Joan & Bette, de sua autoria e que, também, abordava o mesmo contexto.
O ponto alto da minissérie talvez seja o fato dos personagens não serem apenas vítimas do destino, mas protagonistas da própria história, que lutam e têm perseverança para não desistirem de um sonho, são resilientes ao derrotar o preconceito e a discriminação e se unem em prol do bem coletivo e comum.
É o sonho dentro do sonho daqueles que não tiveram a mesma oportunidade. A vida real mostra o contrário.
Rock Hudson viveu enclausurado. Jack, vivido por David Corenswet, nada mais é do que uma homenagem mista a Marlon Brando e James Dean, dois grandes atores que supostamente tiveram um caso e ocultaram seus relacionamentos.
Camille foi inspirada em Dorothy Dandridge, a primeira atriz negra a ser indicada na categoria principal do Oscar e que veio, supostamente, a tirar a própria vida anos depois.
Anna May Wong (Michelle Krusiec), a primeira artista de ascendência asiática a ganhar projeção internacional, foi uma das estrelas que mais sofreu preconceito em Hollywood e nunca chegou a ganhar um Oscar. Samara Weaving, como Claire Wood, é um leve retrato de Marilyn Monroe.
O que Ryan e Ian fazem é estimular um conto de fadas possível. Resta saber se a Hollywood atual abrirá caminho para um Archie (Jeremy Pope), roteirista negro e gay, que voa alto na minissérie.